Não acompanho Mariana. Sua correria pelo quintal, a fala contínua descobrindo e rindo da própria sabedoria. É uma minhoca. Quase! Então, é lagartixa mesmo. Come flor? Não, Mariana. É couve-flor!
Ela não cessa e sempre foi assim. Quando engatinhava chorava depois. Nunca antes. Engatinhar era a própria ousadia apaixonada; pelo chão, por vãos improváveis, em acidentes que terminavam bem. E mesmo sua voracidade nas andanças entre móveis, poça d’agua, piso da sala, era capaz de silenciar profundamente quando, distante, fugia para pensamentos que nunca saberei dizer.
Escolhia cantos para olhar. Qualquer um, sem crivo. Colorido, inerte, mesmo sem suposto atrativo. Desde azulejo empoeirado, retrato, fundo de fogão. Às vezes olhava, e tão fixamente, que eu também desejava ver.
Passei a aceitar seu convite.
Na minha anemia de sentimentos aos espaços que já conheço, conta do mês, dia de feira, queda da bolsa, e de novo lista, feira, venda de ação. Tudo a ela parecia sempre à primeira vez. E era. O que passou a me assustar um pouco já que eu estava bem ali, nas suas recém-experimentações da vida.
Ela caloura. Eu veterana. Decididamente não queria que aquele ser miudinho descobrisse por mim do sem graça das horas e da ganância dos dias – salvo às vodcas, com qualquer prazer fugaz. Mas isso ela ainda não podia.
Que soubesse pelos outros da descrença que trazem os anos, a melancolia do domingo, aquela apatia à felicidade, sobre a paixão e outras ruínas do humano. E busquei ser uma companheira de viagem sem toda aquela minha velha maneira de viver. Mariana tinha a graça que perdi. E se eu não pudesse salvá-la das quedas pela casa, ao menos a salvaria de mim.
Meio àquela anemia de sentimentos aos espaços que já conheço; mercado financeiro, marcar pediatra, contas do mês, ela me convocou a realidade das coisas primeiras. Mariana ia, ia, ia. Corria todos os riscos. Não sofria por eles.
O ensaio dos primeiros passos nunca teve roteiro. Como se fosse possível agarrar o desconhecido e seguir rindo. E não demorou para que eu percebesse que não vou, não vou, ou que quando vou… É sofrendo muito.
Com o tempo aprendi a fugir dos riscos. E bem mais de oito anos consegui viver sem correr nenhum. E vivi do que?
Um dia, e talvez fossem férias, suas madeixas ruivas, ainda mais esvoaçantes, mergulhavam no sol da praia. Mariana passava os dedinhos cheios de sal no rosto. Quase toda encharcada de areia nas costas, cabelo, mãos. Não tinha vaidade?
Em euforia me dizia que precisava cavar. Que se cavasse acharia água.
Tomada pelo meu pensamento pragmático, questionei indiferente: Mariana, pra que é que você quer mais agua com todo aquele mar ali, hein?
Ela segurou sua pá quase perto da boca. Me olhou sem pressa como se eu dissesse algo profundamente presunçoso. E eu disse. Depois inclinou o pescoço à paisagem azul, banhada de Sol: Queria fazer praia por onde eu fosse. Aí não teria mar só ali.
Preciso dizer que Mariana surgiu no momento em que eu acomodava, sem muito espaço, cigarros, indicadores econômicos, louça pra lavar, muito açúcar, um amor estilhaçado, boêmia pelo chão da sala, a lembrança daqueles pronomes oblíquos lá pelas quatro horas do meu dia. Se, me, te. E lembrando assim, nessa ordem, já me ocorrem cenas obscenas. Mas naquele tempo não. A despedida me parecia, antes, um vão torpe irremediável.
Ao contrário de mim, Mariana não carregava entulho algum. Suas gargalhadas eram desprovidas de depois. Pelo quintal em corre-corre sem destino, pedia minha mão,
um esconderijo, dois, três e antes do já! eu estava atrás do sofá. Passamos a experimentar a graça de fazer mar da rotina, da vida. De construir praias em qualquer lugar, mesmo nos dias sem Sol. Com Mariana aprendia a me lavar, continuamente, da dor que também é viver.
Acontece que desde o último inverno ela nunca mais voltou. Paira um silêncio profundo em todos os cantos dessa casa. Embora tudo ainda esteja nublado, sem grandes explicações, algo se passou em mim.
não tive filhos. Jamais levei qualquer garotinha ruiva à praia. Por um tempo Mariana foi um sonho que várias noites me visitou. Há quem diz que ela foi invenção minha, como um ato de loucura ou sobrevivência mesmo. E antes que você também ache assim preciso dizer.
Não lembro quanto tempo durou. Como também já não lembrava essa história toda. Mas hoje arrumando o armário achei um caderno antigo, presente daquele amor estilhaçado. Na última folha, esse rabisco meu:
O dólar caiu, eu também, dia de feira, queria só dormir, mas Mariana precisa comer salada. Sofrer e sofrer pelos riscos. Quase nunca ir. Já não posso mais. Desde que ela surgiu me fiz mar. De agora em diante será assim.
E quando busquei um sentido àquela confissão, algumas memórias se embaralharam: Fisgar o dia como se fosse o primeiro. Alguma ferida cicatrizou. Riscos. Correr antes. Sofrer. Quem sabe? Depois. Brotar feito mar. E ir… ir…ir…Mar…i…ana.