Antes das dezoito ela pichou. Pichou todas as paredes da casa própria deles.
Não ficou nada branco.
Banheiro, sala, sofá, até a escada foi pichada.
Pegou a cadeira, rolo, era pincel no azulejo, jardim.
Desenhou, desenhou, desenhou.
As paredes feito encruzilhada de oferenda, lixo, até flor. Foi spray pra todo lado.
Tinta, almofada por cima.
Lembrava da última viagem ao Japão, aquelas casas com genkan. O espaço de
entrada. Onde se deixa sapato, mala, poeira da vida. Que se pausa, se limpa.
Imersão desprovida de pressa, de qualquer depois.
Continuou.
Era chão pichado, panelas, tudo tinha escrita dela. Borrou no lençol branquinho
pendurado: “Entrar é tudo o que a gente não faz aqui”.
O carteiro que assistia a mulher do outro lado disse baixinho: en-san-de-ci-
da!
Depois ela abriu todos os armários, tupperwares, gavetas, congelador. Entrou
como nunca antes nos espaços cheios, entupidos, encharcados. E também por
isso impossíveis.
Ligou o som alto. Usou caneta, lápis, dedo, língua. Cobriu de tinta a televisão.
– Calma vizinha. O que você precisa?
– Entrar!
– Chamo um médico? Está sozinha aí?
Mas a dona da casa ao lado não entrou pra saber. Que entrar é um desafio que a
gente quase sempre não dá conta. Atrás da fechadura a vizinha também seguia fazendo coisas e mais coisas, sem entrar nelas nunca.
A mulher não parou.
Na cozinha pichou até a batedeira engordurada do final de semana, do bolo com
ameixa. Que depois ia para a mesa, no chá da tarde que eles faziam sem entrar.
Ele lá. Ela cá.
Fazia sol, um sol quente que entrava pelos poros do quintal. Nos livros que ela leu correndo. Em almofadas e cobertas que eles usavam sem nunca entrar dentro para, então, sentir pele com pele, olho dentro do olho, mão que encosta as costas de outra mão. Que entrar é mergulhar por instantes. Parar pra sentir cheiro, sabor, gosto, densidade, altura. De si, de um lugar, dos outros, de alguém. Que ela não.
E usou grafite, giz de cera, nas toalhas também. Tinta pela mesa, na
cadeira, pelo varal. Ela queria tudo pintado, escrito, dito.
Logo no muro da casa deles, tatuou em letras garrafais:
Você que fica em casa já experimentou entrar nela?.
“Mamãe o que é isso?” – a pequena perguntaria se estivesse lá.
Não estava.
Só havia texto, pingo e mais pingo, risco, vermelho, preto, vinho, na cômoda cara
que o dinheiro deles comprou.
Pela casa esparramou tinta com papel picado, moído de frase
solta, uma a uma fazendo fila única no corredor:
– Nas decisões que tomei desta decoração, não entrou nada seu. Nem eu. Que entrar é portal de silêncio, entrega, cuidado, penetração.
– 07 anos de história nessa casa que a gente nunca entrou. E almoços de domingo.Vizinhos indo e vindo.
Entardecia. Ela nem viu.
Não chovia dentro da casa, mas parecia. Gotas e gotas por todo piso.
No canto da varanda mesmo pichou isso:
– Aqui mesmo eu nunca entrei.
E lembrou do trabalho, os projetos de arquitetura, nas gavetas títulos e mais
títulos.
A varanda era só lugar disso: ganhar o próximo trabalho e fazer, fazer, fazer
naquela mesa com planta do lado, outro prêmio da cidade, da casa oito, nove,
349 horas de ida: Como pude sair tanto sem nunca entrar? – se perguntou.
E despejou tinta azul com laranja num pote. Que entrar tem um quê de
mergulho, silêncio, suspiro. Sentiu que nunca entrou de fato no curso que fez. Nunca se preocupou com isso de “entrar”. E misturou as cores com o dedo mesmo.
Uma vida em torno de sair: se sair bem, sair da faculdade, depois da pós, e
depois com o garoto do bar, da casa dos pais, sair do país! E perdeu de vista
coisas sobre entrar… na imensidão do outro, nos encontros pelo instante que nunca são banais.
Quando abriu a torneira, encharcou a parede de suor, lágrima e vento.
Pela primeira vez ouviu surpresa aquilo que a avó dizia tanto, quando ela ainda
tinha avó para dizer.
“Menina, entra pra dentro!”.
E assim fez. Antes de fechar a janela pichou no vidro sombra, o pleonasmo da avó, o som da música que de repente vem, antes mesmo que se saiba como. Que entrar é só o que a gente não faz.
Não era segunda ainda para ingressar o quer que fosse, mas como nunca antes, ela entrou nos livros que leu toda vida apressadamente. Nas histórias que contava
para se enganar. No bolo de morango, chocolate e piche que ele encontraria quando chegasse. Nas escolhas que nunca teve por não saber entrar.
E cobriu de saco cinza o muro da vizinha, que fazia parede com o seu, para não pichar ele também.