Folha de Pitanga

Numa folha cabe o quê?

Sobre Ir

E não sabia ao certo se andava sob o silêncio submisso de ponta de pés, se

julgava no compasso das pausas um lugar para o suspiro, uma forma de dar

voz à dor.

Beatriz movia-se disciplinadamente numa delicadeza que a fazia pétala. E naquela solidão percebia olhos que não a fitavam, preocupavam-se mesmo com figurino, maquiagem, cenário, performance e arranjos.

Temia que entre um salto e outro o corpo desfalecesse, partisse e se espalhasse, num terror repentino, que se misturava a melodia de sua encenação.

Era bailarina! Entendia sua vocação. Cotidianamente estreitava os mesmos

laços, tornava a transpassar de fitas o manequim, com frequência fazia as

pazes com o corpo que, vez ou outra, queixava alguma estripulia. Não

desacatava aquelas sapatilhas mágicas que agora pareciam cantar despedida:

“Já não posso mais…”.

Aquela caixinha de música escondia, além dos aposentos de bailarina e sua

camareira, os badulaques que permitiam a apresentação do espetáculo a cada

pulsar de uma mão que inadvertidamente, ou não, desatava o feche…

E a caixinha se abria!

Corda e piano, chão cintilante, ação!

A rotina seguia no trânsito mesmo dança-descansa, silhueta, medidas em dia,

cuidado, estrado marcado e paetês.

Não culpava o tempo, ao contrário, admitia que este lhe fora generoso ao

longo dos anos a oferecer uma plateia distinta. E além desta, uma esperança

traduzida em ansiedade e alegria que lubrificava sua vaidade.

Então alguém aparecia; depois outros. Lágrimas, memórias, risos, e lhe

bastava!

Mas algo acontecera, não sabia ao certo decifrar. Naquele ir e vir; abre e

fecha; pausa e canção; tornava a se vestir segredando a fiel camareira:

“Estou apenas reagindo. Há tempo que não danço mais!”.

Lady Brilu que cuidava de todos os detalhes não compreendia o desabafo. Os

shows aconteciam como de costume, pensava. E tornava a lembrar-lhe com

primazia as sutilezas de seu dom: beleza, fantasia, sedução.

Sendo bailarina, Beatriz passou a considerar a possibilidade de um passo

inconsequente. Ultrapassaria os limites da caixinha céu abaixo e, quem sabe,

apaziguaria aquela dor silenciosa, intransponível a camareira; sufocante,

imperceptível a plateia.

Seu aposento reservara, como por descuido, uma fresta que mais lhe servia de

janela para fitar as peripécias do mundo. Confundia-se, teria aprendido com

clareza tudo aquilo que diziam os humanos?

Sob a cômoda que acolhia a caixinha via fotos de uma beleza extasiante que

chamavam “amar”. E vez ou outra ousava pensar que “amor” era algo como

dizer “na minha humanidade te preciso”. E isso desejou.

Porque eram humanos que diziam e não uma bailarina engaiolada numa

caixinha imaginava esse encanto: envelhecer com vista para o mar, amar. Seria tudo uma coisa só?

Remoía as ideias com suas fitas e sapatilhas, afinal, Lady Brilu jamais

compreenderia. Ela se preocupava sim em engomar vestido, endossar

maquiagem, cobrar disciplina, postura, quadril e coluna em perfeita harmonia.

E bailarina repetia: “Oh eu só faço espetáculo, mas já não danço mais”!

Ser boneca bailarina anos à vida começou a doer. Como seria ter um nome

para habitar? Mas ela não. E respirou profundamente.

No fundo imaginava que o mundo lá fora também atuava em espetáculos

particulares e públicos. Sentia constrangimento e agonia em pensar a vida

para além da caixinha.

Queria mesmo era trilhar o encantamento, a magia, sentir aquele suspiro

de vida dos humanos. E ensaiou o mais arriscado dos saltos.

Naquela manhã, sem agasalho de fitas, de paetês, antes mesmo que o sol fosse visto pela escrivaninha, beijou sua Lady, rabiscou algo num papel cintilante. E se despediu quando a caixinha se abriu.

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