Folha de Pitanga

Numa folha cabe o quê?

Nunca tudo à mostra

Esse texto era sobre esconder. Aquele ímpeto infantil que desde o berço angustia em “cadê o bebê?”. E logo cede a gargalhada “eeeee achôooou”.

Acontece que depois, com o gotejar do tempo, das miudezas, mesmo com o súbito do descabido, do sem lugar, que essa tal descoberta – antes motivo de festa – se transmuta no terror: do flagrante, do outro ver, de um desejo maltrapilho revelado, de saberem sobre aqueles traços, que nunca deveriam ser.

E se esconde pela vida. E se vive escondendo. Vãos, um lado da barriga, medo, marcas, noite mal dormida. Mesmo nas gavetas de um velho armário se esconde algo do tempo, dela, de orgulho, uma fotografia, ele.

Durante um tempo passei a acumular respostas a essa dúvida. Desde relatos soltos a papéis bem dobrados, até em paredes de banheiros públicos e noites em bares. Uni murmúrios, deslizes, ecos com falta de ar.

A abordagem era sempre a mesma: Por favor, pode responder sem se identificar?

Você esconde o quê?

Essa crônica era para costurar de algum jeito as respostas. Dar voz àquelas letras e rasuras. Contar como desse o que vi, ainda que não fosse exatamente assim:

Com o volume alto da tv escondia o barulho da chuva. O medo da casa vazia, do rio que podia de repente encher. E lembrei que escondi, como se nada tivesse acontecido, minhas saudades de você.

Eu queria arquitetar de alguma maneira engenhosa esses ditos colhidos, dizer linha a esmo silêncios alheios e tecer porquês. De recônditos, do medo de deixar ver. E fugas. E silêncios pela mala. Nos aniversários, em calçadas agitadas, nas redes sociais que seria melhor não ver, todos escondemos algo? E por quê?

No fundo creio que intentava demonstrar essa minha hipótese; Que humanos são também corpo-palavra-calada-apertada-trancada, que perambula vida afora. Isso:

Tanto cabelo perto do olho esconde um pouco do meu rosto. Largo, exótico, ilhado do meu desejo de mim.

Esse texto era sobre o que escondem os outros. Na saudade. Do espelho. Nos jantares familiares. Ao redor.

Me escondo do Sol, pois não gosto da minha face. Acredito que o Sol clareia muito, mostra muito….
Sou assexuada, nunca tive relações sexuais e não tenho a microscópica vontade(…).

Então eu me debruçaria sob esses retalhos com alguma poesia, como quem se encharca na chuva, depois encontra uma forma de não adoecer. E conseguiria contar:

Nosso acidente grave se escondeu numa cicatriz. Depois numa tatuagem em Trindade. Hoje é só um dizer no meu corpo, que a manga da blusa esconde bem.

Era pra ser um ode à tudo aquilo que não se diz, assim, no seu cru, na literalidade do esconderijo alheio:

Eu escondo que sou adotada.
Segundas intenções.
Que me masturbo.
Namorei três anos uma mulher.
Escondo os meus sentimentos por um cara que não se interessa por mim.
Um lençol que só consigo dormir com ele.
Que eu o trai.

Dos retalhos pretendia gerar, com alguma maestria, algo que você lesse até o final. Até achar, escondido nessas entrelinhas, o que também guarda.

Aquele raso amor escondia na minha demora pela madrugada no sofá encapado, escondido de sujeira, da nossa poeira.

Era para ser um texto sobre “esconder”. Com metáforas, pequenas hipóteses analíticas. Psicanálise. Momentos de filosofia. E alguma prepotência ou crença em conseguir fazer você me ler.

Acontece que ela adoeceu. Não parecia grave, mas precisou ficar, porque aparências também escondem. E eu estou aqui, há dez longos dias, sobre essa crônica que era pra ser. Desde sua ausência na casa, na prosa com café, nos instantes que espero.

Esse artigo, que era sobre os “esconderes” alheios, me faz companhia nesta noite quente. Estou distante das diversões irreverentes. Não há gargalhada pelos ares. Não puder ir. Há dez dias não vou verdadeiramente a canto algum que não seja este lugar – a memória dela, o meu medo, algum autoengano, a angustia de não saber, a finitude da cura, do ser, e se ela não voltar?

E agora a crônica que era pra ser me flagra. Desconverso. Volto às histórias colhidas, a minha pergunta de antes. Imagino o secreto lançado para baixo dos tapetes da alma. Afago todos esses não ditos em alguma forma de escrever.

Me escondia de mentira no quintal. Mesmo a garoa esconde vezes e motivos muito mais inconvenientes.

E se convido seus olhos a estas palavras todas é também porque escapo. Chamo os outros – as falas alheias. Faço delas texto, verso, segredo anônimo espalhado, esparramado. Para que não sobre suspeita alguma que hoje, enquanto ela não volta, quem se esconde sou eu.

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